Revista Cálculo – Março 2011

ENTREVISTA COM NUNO CRATO

O INSTIGADOR

NUNO CRATO é o matemático mais conhecido de Portugal. Ele dá entrevistas para jornais e revistas, escreve para jornais e revistas, aparece em programas na TV, fala no rádio. Em tudo o que faz, Nuno segue mais ou menos o mesmo método: atiçar a curiosidade do interlocutor para trazê-lo ao mundo da matemática.

Por Renato Mendes

Quase sempre, Nuno Crato propõe um problema curioso, e o interlocutor fica com vontade de usar matemática para resolver o problema; ou ele propõe um problema e já fornece a resposta, mas a resposta é tão estranha que o interlocutor fica com vontade de usar matemática para descobrir por que a resposta é certa. Nos dois casos, Nuno consegue o que quer: fazer o leitor, telespectador ou ouvinte usar a matemática com prazer.

Ele viveu 15 anos nos Estados Unidos, onde se doutorou em matemática aplicada e trabalhou como cientista e professor universitário. Até hoje é admirador do jeito americano de escrever. “A minha escrita foi muito influenciada pelos Estados Unidos”, diz Nuno. “Os norte-americanos têm um estilo de escrita clara, direta, com parágrafos curtos e palavras simples.” Ao juntar o rigor do cientista, o didatismo do professor e o estilo simples e direto dos bons redactores americanos, Nuno ganhou audiência, fãs e prémios de organismos europeus, inclusive o prêmio de Comunicador de Ciência do Ano, dado em 2008 pela Sociedade Europeia de Matemática.

Recentemente, Nuno virou o presidente do Taguspark, um centro de ciências e de tecnologia localizado em Lisboa, que reúne empresas, universidades e institutos. Agora ele gasta a maior parte de seu tempo com o Taguspark, mas ainda pesquisa modelos probabilísticos para a sequenciação do DNA (a molécula com a receita de um ser vivo) e ainda dá aulas.

Física, astronomia, química, biologia – qual ciência estabelece novos limites para a matemática?

No século 20, a economia ajudou a desenvolver a matemática. Surgiram novas técnicas matemáticas na pesquisa operacional, na estatística, na econometria; surgiu a teoria dos jogos. Áreas inteiras da matemática surgiram por influência da economia.

Mas eu julgo que, no século 21, a biologia vai obrigar a matemática a se desenvolver. A biologia levanta problemas que nós não sabemos ainda resolver, por várias razões. No DNA de qualquer ser vivo, por exemplo, há uma quantidade muito grande de informação, uma quantidade tão grande que obriga as pessoas a abordar o assunto de outras maneiras. É claro que se pode usar a estatística, mas não podemos ficar só na estatística.

A matemática vinda da realidade se transforma em matemática pura?

Sim, a matemática se desenvolve por confronto com a realidade, mas logo em seguida se desenvolve em função do produto do pensamento humano puro. Os matemáticos criam desenvolvimentos que não são ditados por nada de externo à matemática. Quase todas as atividades matemáticas estabelecem novos limites, embora atualmente haja ramos da matemática mais decisivos no alargamento dos limites da matemática. Um exemplo é a topologia algébrica, que junta a geometria com a análise e com outras áreas avançadas da matemática.

Até que ponto é possível aproximar o grande público da matemática?

Nossos dois países, Portugal e Brasil, precisam muito do espírito científico, e há muitas maneiras de fazer divulgação científica, de ajudar as pessoas a prestar atenção na ciência.

A certa altura, a Sociedade Portuguesa de Matemática [SPM] colaborou com os produtores de uma telenovela portuguesa destinada ao público jovem, e criou uma espécie de olimpíada matemática dentro da telenovela. Aparecia na história um jovem que era campeão olímpico de matemática, e todos gostavam desse jovem. Foi uma coisa muito positiva. Foi muito importante para nós em Portugal, porque levou um grupo grande de jovens a ver a matemática de outra perspectiva.

Numa outra ocasião, o Teatro Trindade apresentou um musical sobre Fermat [Pierre de Fermat, 1601-1665, matemático francês], que foi um matemático amador e cujo último teorema só foi provado em 1993. No fim de cada espectáculo, a SPM organizava uma sessão de discussões com a audiência e explicava o que Fernat tinha feito. Mas isso, não significava dar lições às pessoas.

Divulgar ciência é uma profissão, no sentido de que há técnicas específicas de divulgação?

Sim, para divulgar ciência o divulgador precisa dominar toda uma técnica. Há técnicas para escrever, para explicar alguma coisa a uma grande audiência, para falar na televisão, para mostrar uma experiência às pessoas. O divulgador científico tem de ser uma espécie de bom contador de histórias; tem de saber envolver o público.

Por exemplo, conheci o Bill Bryson em Londres; ele escreveu o livro Breve História de Quase Tudo, que é uma história de ciência em 544 páginas. É um modelo extraordinário de divulgação científica, porque o livro é muito bem escrito. O autor não é cientista, mas trabalhou a sério, tem toda a técnica do jornalismo e da escrita, consultou muita gente e fez um livro magnífico; é dos melhores livros do fim do século 20.

Contudo, eu não acho que seja missão de todo cientista ser divulgador científico. No meu caso, é uma missão, mas é porque eu gosto de fazer as duas coisas, ciência e divulgação.

O que foi para você viver 15 anos Estados Unidos?

Foi uma experiência decisiva: foi uma virada completa. Quando foi para os Estados Unidos, já era académico, fui fazer um doutorado em Delaware [um estado americano], e durante alguns anos trabalhei ao mesmo tempo como professor assistente na universidade e como consultor. Foi importante para mim entrar em contato com o modo sério como os norte-americanos fazem pesquisa científica e o modo como se dedicam ao trabalho.

Além disso, a minha escrita foi muito influenciada pelos Estados Unidos, porque os norte-americanos têm um estilo de escrita clara, direta, com parágrafos curtos e palavras simples. Eu nunca tinha aprendido escrever dessa maneira.

Como você compara a divulgação de matemática, o ensino e a pesquisa?

Há pontos de contato, mas acho bom ficar atento às diferenças, por que as diferenças são grandes.

A divulgação é destinada ao público em geral e é episódica. Não há um programa de divulgação; vamos falando das coisas, aproveitamos o musical sobre o Fernat, aproveitamos uma exposição de obras do Escher [Maurits Cornelis Escher, 1898-1972, artista gráfico hoandês]; vamos falando à medida que as coisas vão aparecendo.

O professor pode aproveitar algumas referências da divulgação, pode aproveitar as maneiras de explicar as coisas que os divulgadores inventam. Mas é um erro pensar que é possível fazer o ensino tal como se faz a divulgação. Para ensinar, precisamos de programas estruturados, precisamos de rigor, de horários, de avaliações.

Já o pesquisador se dedica a descobrir resultados novos. Seu trabalho é episódico: ele não necessariamente vai se dedicar àquilo que é mais importante no momento. Confundir pesquisa com ensino é prejudicial, porque o aluno não é um pequeno pesquisador. Quando muito, o aluno vai redescobrir algumas coisas que já foram descobertas, ou vai participar ativamente numa redescoberta guiada pelo professor. Em Portugal, e julgo que no Brasil também, há uma tendência de olhar para as crianças e dizer-lhes que são pequenos cientistas – é o ensino pela descoberta.

Mas, se pensamos um pouco na história da ciência, vemos que a humanidade demorou milénios para descobrir que, se não houver a resistência do ar, dois corpos caem sempre à mesma velocidade, não importa sua massa. A ideia foi inicialmente proposta por Aristóteles e só depois de dois milénios ela foi correctamente formulada por Galileu. É um erro pensar que as crianças, em meia hora na sala de aula, vão fazer descobertas que demoraram à humanidade esse tempo todo.

De que fala seu livro mais recente. A Matemática das Coisas?

Ao longo dos anos, eu olhava para as coisas e tentava vê-las com os olhos de um divulgador científico. Acumulei referências. Um dos capítulos do livro, por exemplo, se chama A Mais Bela. É uma brincadeira com a história da Bela Adormecida. Os matemáticos acham que as equações podem ser belas, e as pessoas ficam curiosas sobre isso. Como uma equação pode ser bela? Os símbolos são bonitos? [risos] É uma beleza conceitual; as equações sã belas quando traduzem muita coisa de forma simples. Fizeram uma vez dois concursos com matemáticos e cientistas, meio de brincadeira, e perguntaram qual é a fórmula mais bela de todas. Nas duas ocasiões, ganhou a fórmula de Euler, que é uma fórmula fantástica, porque ela junta os números mais importante da matemática, o um, o zero, o número e, o número pi, a unidade imaginária i. A fórmula junta áreas que as pessoas não acreditavam que pudessem ser relacionadas: a exponenciação com os números complexos com pi. Ela dá a entender, a quem a vê, que ela fala de algo muito profundo e simples ao mesmo tempo. Aí está a beleza da matemática: ela consegue ser bela quando é simples e abrangente.

Como você via a matemática no começo da carreira? E hoje?

Quando eu estava no liceu [ensino médio], havia uma frase do Einstein na parede da sala de aula. Ela dizia algo assim: “Como é possível que a matemática, que é afinal um produto puro do pensamento humano, independente da experiência, seja tão maravilhosamente adaptada aos objectos da realidade?” Eu não entendia bem essa frase, e não estou a dizer que hoje a entendo bem. É uma pergunta muito profunda. Como é que nós, com o pensamento, chegamos às coisas? Claro que o pensamento é influenciado pelas coisas, mas essa relação entre pensamento puro e aplicabilidade é algo muito interessante.

Quais são suas dicas para quem deseja estudar matemática, mesmo apenas por prazer?

Leia artigos de divulgação matemática. Resolva problemas de matemática, quebra-cabeças, problemas de lógica. Isso ajuda muito.

Para quem se entusiasma mais, essa pessoa volta e meia deveria fazer um esforço para ler um livro de matemática, que não seja só divulgação; um livro que tenha equações, gráficos e tudo o mais. Ler um livro de matemática é bom para se manter actualizado e para progredir.

Nós temos em português um livro fantástico, de um autor chamado Bento de Jesus Caraça, que morreu em 1948. Ele se chama Conceitos Fundamentais da Matemática, e é um livro de um professor não para seus alunos, mas para o público em geral. É uma espécie de divulgação avançada, porque o autor incluiu equações e gráficos, e tratou os conceitos de forma muito séria. Eu recomendo esse livro.

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